O esvaziamento do princípio da não cumulatividade do ICMS

*Texto publicado no Consultor Jurídico – CONJUR em 23.09.2020

https://www.conjur.com.br/2020-set-23/consultor-tributarioo-esvaziamento-principio-nao-cumulatividade-icms

No momento em que especialistas em matéria tributária, economistas e parlamentares experientes debatem a criação de um novo imposto nacional sobre o consumo, apoiado no princípio da não cumulatividade, é importante observar o que acontece atualmente com o ICMS, tributo que constitucionalmente também é regido por essa técnica de abatimento de créditos.

Pessoalmente, não acredito que seja boa política desprezar mais de cinco décadas de experiência em tema de ICMS (consolidação de conceitos, construção de consensos hermenêuticos, rotinas práticas etc.) e começar do zero, apostando-se na criação de um novo imposto que, embora de alcance mais amplo (atinge bens em geral e não apenas mercadorias), estruturalmente vai se apoiar na mesma diretriz fundamental do ICMS (não cumulatividade). Reconheço que o ICMS tem problemas que devem ser enfrentados com coragem por todos aqueles que desejam um sistema tributário mais racional, inteligente e justo. No entanto, a solução dos conhecidos problemas do ICMS parece-me um caminho mais simples e fácil do que a construção de um novo e desconhecido imposto.

Grande parte dos problemas do ICMS, como de resto acontece em todos os impostos sobre o valor agregado pelo mundo, está na definição do campo permitido para a tomada de créditos pelos contribuintes. No Brasil, esses problemas são gerados pelo desejo do legislador de aumentar a arrecadação mediante a vedação ao amplo direito de crédito do contribuinte, em manifesta agressão ao princípio vetor do imposto que é a não cumulatividade, prática que lamentavelmente tem contado com o beneplácito dos tribunais superiores.

A Constituição Federal brasileira, em exemplo único no mundo, contempla as regras fundamentais do nosso sistema tributário, entre as quais, em maior ou menor medida, a disciplina da estrutura de incidência dos tributos. Essas regras, sempre importante a lembrança, constituem garantias constitucionais do contribuinte e expressas limitações constitucionais ao poder de tributar e assim devem ser tomadas em qualquer processo de hermenêutica constitucional.

Ao estabelecer a competência para os Estados e o Distrito Federal instituírem o ICMS, o constituinte, desde logo, previu (artigo 155, parágrafo 2º, inciso I) que esse imposto será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.

Observe-se que o constituinte não apenas impôs a não cumulatividade ao ICMS. Poderia ter simplesmente enunciado: o ICMS será não cumulativo. Ponto. Não agiu assim o constituinte. Foi além e definiu no texto constitucional a não cumulatividade que pretende seja regra estruturante do ICMS. Deixou, assim, pouquíssima margem para o legislador complementar na disciplina do tema.

Tratando-se de imposto plurifásico, incidente em várias etapas do processo de circulação de mercadoria, a existência de desonerações no meio da cadeia de circulação pode causar distorções. Prevendo essa circunstância, o legislador constituinte determinou (artigo 155, parágrafo 2º, inciso II) que a isenção ou não incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes e acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores.

Em outras palavras, a Constituição Federal foi clara ao estabelecer a ampla não cumulatividade para o ICMS, sem distinção de produtos, mercadorias ou serviços, disciplinando objetivamente as hipóteses excepcionais de desoneração (isenção ou não incidência) no meio da cadeia de circulação alcançada pelo imposto.

O ICMS é, sem sombra de dúvida, um imposto sobre operações de circulação de mercadorias e prestação de alguns serviços. O legislador constituinte não ligou o direito ao abatimento de crédito à natureza da utilização da mercadoria ou do serviço pelo adquirente destes. Não há qualquer condicionamento constitucional do direito ao cômputo do imposto pago na aquisição de uma mercadoria ou serviço tributado à posterior destinação que o adquirente dê a esta mercadoria ou serviço, basta evidentemente que este adquirente seja devedor do mesmo imposto pelas operações e prestações seguintes que promova.

A não cumulatividade, regra estrutural do ICMS, é comando constitucional ligado à pessoa do contribuinte, e não à destinação dada à mercadoria ou serviço (tributados) por ele adquirido. O objetivo de política fiscal buscado pela não cumulatividade é permitir que o contribuinte do ICMS recolha aos cofres públicos uma parcela calculada sobre o valor por ele agregado em sua atividade. Logo, se ele adquire mercadorias e serviços tributados pelo ICMS deve ter o direito de abater os créditos respectivos na determinação do montante a recolher relativamente aos fatos econômicos que praticar, desde que também alcançados pelo mesmo ICMS. Essa é a lógica que preside todo e qualquer imposto sobre o valor agregado.

No entanto, infelizmente, o legislador tributário afastou-se da clara determinação constitucional no que tange à não cumulatividade do ICMS e o Supremo Tribunal Federal vem chancelando esse equívoco, o que contribui decisivamente para aumentar os problemas e a complexidade do nosso caótico sistema tributário.

A Constituição estabelece (artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, letra “c”) que cabe à lei complementar disciplinar o regime de compensação do imposto. Apoiada em uma leitura tortuosa e equivocada desta regra constitucional, o legislador complementar (LC 87/96, artigo 33) arvorou-se no direito de criar exceções ao princípio da não cumulatividade, tornando o ICMS um imposto cumulativo ao vedar o direito de crédito de mercadorias destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento, aquisição de energia elétrica em atividade comercial ou administrativa, mercadorias destinadas ao ativo permanente e serviços de comunicação tomados por contribuintes cujo objeto não seja prestar estes mesmos serviços.

Em outro dizer, a pretexto de ““disciplinar” a não cumulatividade do ICMS, o legislador complementar transformou o ICMS em imposto cumulativo em algumas situações, afastando-se completamente do desiderato constitucional que foi claro no sentido de prever apenas duas exceções à não cumulatividade desse imposto, notadamente nas hipóteses de isenção e não incidência.

A determinação constitucional para “disciplinar” o regime de compensação do imposto não autoriza a criação de exceções não contempladas na Constituição, sobretudo quando conflitam diretamente com a lógica estrutural de incidência do imposto. Se a pretexto de “disciplinar” o regime de compensação do ICMS puder o legislador complementar criar exceções à não cumulatividade, a determinação constitucional de não cumulatividade do imposto terá seu conteúdo normativo completamente esvaziado em agressão ao princípio da supremacia das disposições constitucionais.

Julgando recentemente o tema (Recurso Extraordinário 601.967-RS), o Plenário do Supremo Tribunal Federal caminhou em sentido diferente, ao decidir, por maioria de votos, nos termos do voto do ministro Alexandre de Moraes (redator para o acórdão), que “o contribuinte apenas poderá usufruir dos créditos de ICMS quando houver autorização da legislação complementar. Logo, o diferimento da compensação de créditos de ICMS de bens adquiridos para uso e consumo do próprio estabelecimento não viola o princípio da não cumulatividade”. Para o ministro Alexandre de Moraes, “o contribuinte apenas poderá usufruir dos créditos de ICMS quando houver autorização da legislação complementar”.

Em outros termos, o que a corte está afirmando no citado precedente jurisprudencial é que quem transforma o ICMS em imposto não cumulativo é a lei complementar e não o artigo 155, parágrafo 2º, inciso I, da Constituição Federal, não obstante esta regra constitucional seja claro, não só ao impor à não cumulatividade ao ICMS, como também ao definir esta técnica de incidência tributária. Ao assim decidir, o Supremo Tribunal Federal esvaziou completamente o sentido normativo desta regra constitucional a abriu as portas para que o legislador complementar possa criar ao seu alvedrio o ICMS que bem entender e não aquele determinado pelo constituinte.

Essa decisão do Supremo Tribunal Federal representa mais uma lamentável contribuição para a destruição do sistema constitucional tributário desenhado pelo constituinte de 1988 e contribui decisivamente para a destruição da não cumulatividade do ICMS.

A reforma dos nossos tributos sobre o consumo não trará os resultados que todos desejamos enquanto o texto constitucional caminhar em uma direção e o legislador, e sobretudo os tribunais superiores, na direção oposta. Um imposto sobre o valor agregado, como desenhado pelas propostas de emendas constitucionais em debate no Congresso Nacional, exige que o princípio da não cumulatividade seja compreendido e aceito por todos, especialmente pelos tribunais, como regra de ouro da incidência tributária e não como mera recomendação normativa ao legislador, como fez o Supremo Tribunal Federal no RE 601.967-RS.

De nada adiantará uma ampla reforma do texto constitucional, com a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), ou qualquer outro nome que se atribua ao pretendido imposto nacional sobre o consumo, se os tribunais não entenderem que não existe meia não cumulatividade, que as exceções ao direito ao abatimento de créditos assumidos pelo contribuinte devem ser raras, justificadas na própria lógica de incidência do imposto, e não apoiadas na necessidade de arrecadação dos entes tributantes.

Não cumulatividade não é técnica tributária apoiada na natureza ou na utilização que o comprador-contribuinte do imposto posteriormente der ao bem, mercadoria, serviço ou insumo adquirido (input), mas instrumento de neutralização do efeito econômico gerado pela incidência em cascata sobre estes itens adquiridos, os quais integram o custo da unidade produtiva que produzirá um resultado (output) sujeito à nova incidência tributária.

Os tribunais superiores dariam inominável contribuição ao país e à melhoria do nosso sistema tributário se começassem a aplicar a não cumulatividade do ICMS pelo que está previsto na Constituição Federal, e não a partir do que está estabelecido pela legislação complementar. Se a não cumulatividade do ICMS prevista constitucionalmente estivesse sendo observada pelos tribunais superiores, muitos dos problemas hoje vividos pelo sistema tributário não existiriam.

Problemas relacionados aos incentivos fiscais em operações interestaduais seriam resolvidos se desde o início os tribunais fizessem observar o comando derivado do princípio da não cumulatividade segundo o qual o adquirente somente pode tomar crédito de imposto que foi pago na operação de aquisição. Se esse imposto foi dispensado (ao arrepio da Constituição) pelo Estado do vendedor-remetente, descabe o direito de crédito ao adquirente, pois não constituiu ônus a ser abatido na operação subsequente.

O problema do ressarcimento dos créditos acumulados pelo exportador, hipótese de neutralização econômica derivada do princípio da não cumulatividade, igualmente seria solucionado se tais créditos pudessem ser livremente transferidos pelo exportador a outros contribuintes, por sua conta e risco, dentro das regras do lançamento por homologação, ou utilizadas como moeda de pagamento de dívidas com o Estado.

Regras nacionais de uniformização de procedimentos e obrigações acessórias diminuiriam muito dos custos de conformidade dos contribuintes e, de quebra, evitariam lesões ao princípio da não cumulatividade representadas por algumas negativas ao direito ao cômputo de créditos apoiadas em regimes especiais que criam obstáculos procedimentais ao pleno exercício deste direito.

Todas estas medidas exigem que o Poder Judiciário compreenda o verdadeiro sentido do princípio da não cumulatividade, enquanto comando estruturante da própria lógica de incidência do ICMS. Se os tribunais continuarem entendendo, como infelizmente fez o Supremo Tribunal Federal no RE 601.967-RS, que os contornos da não cumulatividade são definidos pelo legislador complementar, a quem compete autorizar ou negar a tomada de créditos, dificilmente o nosso sistema tributário encontrará um caminho melhor.

É chegada a hora de o Brasil ter um imposto verdadeiramente não cumulativo. Para isso, é fundamental que os tribunais compreendam a verdadeira natureza desse princípio vetor dos tributos não cumulativos e impeçam os entes tributantes de utilizar a vedação ao direito de crédito como instrumento para aumento de arrecadação.

Deixe um comentário