*Texto publicado no Consultor Jurídico – CONJUR em 16.12.2020
https://www.conjur.com.br/2020-dez-16/consultor-tributario-destruicao-legalidade-tributaria-stf
A Constituição encarna os valores fundamentais da sociedade brasileira que democraticamente decidiu conviver sob os princípios do Estado de Direito, entre os quais a separação de poderes, a garantia de posições de liberdade corporificadas nos direitos fundamentais e a imposição de limites absolutos ao exercício do poder estatal acompanhada da responsabilização jurídica dos titulares do poder político.
Em matéria tributária, a Constituição brasileira de 1988, na esteira da tradição iniciada com mais vigor pela Constituição de 1946, escolheu inequivocamente o caminho da proteção aos direitos individuais dos contribuintes em face da atuação do poder tributante. Esta escolha se manifesta na disciplina minudente das competências tributárias, com a indicação das materialidades econômicas possíveis de serem alcançadas pelo legislador infraconstitucional, na estipulação de matérias reservadas a um veículo normativo de aprovação especial (lei complementar) e, sobretudo, pelo extenso rol de “limitações constitucionais ao poder de tributar”.
A Constituição brasileira é a carta dos direitos dos contribuintes, é claramente um documento jurídico de proteção de posições de liberdade, de garantias individuais contra o exercício do poder político. Não há dúvida quanto à decisão da sociedade brasileira, através de seus constituintes, de que o exercício do poder de tributar deve ser exercido dentro de estritos limites constitucionalmente definidos. A Constituição não está a serviço do poder tributante, como instrumento para a instituição e o aumento de tributos; ao contrário, manifesta clara preocupação com o exercício desmedido deste poder. O compromisso da Carta é com a proteção dos interesses da sociedade e dos contribuintes.
No rol das limitações constitucionais destaca-se o sagrado e vetusto princípio da legalidade tributária, segundo o qual é vedado aos entes tributantes exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça (art. 150, I). Uma biblioteca inteira já foi escrita sobre este princípio fundamental da tributação, onde destaca-se, de um lado, o seu caráter material, concernente a sua importância para a afirmação valores da democracia representativa, materializados na participação dos Parlamentos na definição da cota de sacrifício pessoal que cada cidadão deve assumir para viver em sociedade, e de outro, o seu caráter formal, no sentido de exigir um veículo normativo votado, aprovado e sancionado segundo regras previamente definidas pela ordem jurídica, como exigências básicas de segurança jurídica e previsibilidade normativa.
É fato que a tributação representa uma invasão estatal sobre a liberdade de uso, gozo e disposição de bens privados, por tal razão já está submetida à regra geral da legalidade que deve conduzir as ações do Poder Público segundo a qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude lei”, consagrado no nosso Texto Constitucional com direito fundamental (art. 5º, II). No entanto, o nosso constituinte foi mais longe e, para enfatizar o seu compromisso com a legalidade, em todas as suas dimensões, decidiu reproduzir expressamente a exigência de lei formal para criar ou majorar tributo como limitação ao poder de tributar.
Este compromisso constitucional com a legalidade tributária vem sendo paulatinamente desconsiderado pelo Supremo Tribunal Federal em sucessivas decisões, em manifesta afronta à ideologia constitucionalmente adotada. Não é exagerado dizer que o Supremo Tribunal Federal vem reescrevendo o princípio da legalidade tributária destruindo o alicerce constitucional construído em 1988, promovendo insegurança jurídica em uma exegese que não guarda coerência com a disciplina do texto constitucional.
É certo que cabe ao Poder Judiciário atualizar o sentido normativo das disposições constitucionais, mas a interpretação jurídica jamais pode fugir dos limites de significação semântica, axiológica e teleológica do texto normativo. É ele o início e o final de qualquer processo hermenêutico. A interpretação constitucional, sobretudo quando formulada por quem tem a sagrada missão institucional de ser o Guardião da Constituição, não é campo para torneios linguísticos, voluntarismos hermenêuticos, teorias jurídicas construídas no plano acadêmico sem qualquer apoio no texto normativo, a fortiori quando sustentadas em doutrinas alienígenas formuladas sob ordens constitucionais diversas.
A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, vencido o Ministro Marco Aurelio, na ADI 5277 e no RE 1.043.313, relatados pelo Ministro Dias Toffoli, vai ficar negativamente marcada na história do constitucionalismo brasileiro como uma virada (lamentável) de página acerca do significado da legalidade tributária como instrumento de proteção dos contribuintes contra o exercício do poder tributário.
Em manifesto desprezo pelo compromisso constitucional com a legalidade tributária, o Ministro relator admitiu que o legislador ordinário, fora das expressas exceções constitucionais (IPI, IOF, IImp e IExp) pode renunciar ao seu dever de prever todos os aspectos da materialidade tributária, delegando tal poder normativo ao Chefe do Poder Executivo. Na visão do Ministro relator, o Poder Legislativo pode livrar-se do dever jurídico de definir um elemento essencial do dever tributário, como a alíquota, delegando tal missão ao Poder Executivo, mesmo em hipóteses não previstas constitucionalmente.
Ao assim decidir, torna-se manifesta a ausência de compromisso da Corte com própria Jurisprudência que desde longa data reputa inconstitucional a delegação ao Poder Executivo de poderes que são constitucionalmente atribuídos ao Poder Legislativo. Este não pode renunciar à missão constitucional de legislar sobre matérias que o constituinte reputou de tamanha importância que exigiu a expressa manifestação dos representantes do povo. Veja-se a propósito o decidido pela Corte na ADI 1296 (rel. Min. Celso de Mello) reconhecendo a inconstitucionalidade da delegação de poderes em matéria tributária ao Poder Executivo:
“Não basta, para que se legitime a atividade estatal, que o Poder Público tenha promulgado um ato legislativo. Impõe-se, antes de mais nada, que o legislador, abstendo-se de agir ultra vires, não haja excedido os limites que condicionam, no plano constitucional, o exercício de sua indisponível prerrogativa de fazer instaurar, em caráter inaugural, a ordem jurídico-normativa. Isso significa dizer que o legislador não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado – como o Poder Executivo – produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte parlamentar. O legislador, em consequência, não pode deslocar para a esfera institucional de atuação do Poder Executivo – que constitui instância juridicamente inadequada – o exercício do poder de regulação estatal incidente sobre determinadas categorias temáticas – (a) a outorga de isenção fiscal, (b) a redução da base de cálculo tributária, (c) a concessão de crédito presumido e (d) a prorrogação dos prazos de recolhimento dos tributos -, as quais se acham necessariamente submetidas, em razão de sua própria natureza, ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei em sentido formal. – Traduz situação configuradora de ilícito constitucional a outorga parlamentar ao Poder Executivo de prerrogativa jurídica cuja sedes materiae – tendo em vista o sistema constitucional de poderes limitados vigente no Brasil – só pode residir em atos estatais primários editados pelo Poder Legislativo.”
É indisfarçável a necessária vinculação da legalidade tributária com a separação de funções normativas no Estado de Direito no contexto e nos limites do Texto Constitucional, de modo que, fora das exceções constitucionais, não pode o Poder Legislativo renunciar ao seu dever de legislar plenamente.
Importante observar os fundamentos do Ministro relator da citada ADI para justificar a “nova legalidade tributária” que ele enxerga na Constituição. Começa por resgatar precedentes da Corte validando a exigência de tributos cujas materialidades foram expressas pelo legislador através de termos com significação aberta cujo complemento semântico exigiu a intervenção de regulamentos do Poder Executivo, o que, segundo ele, permite concluir que o Texto Constitucional não exige legalidade tributária estrita, mas apenas uma “legalidade suficiente”, sem explicar o que significa este termo. É o caso de se indagar: quais os critérios para tal suficiência? E quem o estabelece? O próprio Supremo Tribunal Federal? Está o princípio da legalidade tributária à disposição dos critérios casuísticos da Corte ou dos demais Poderes?
Com o devido respeito, a legalidade tributária estrita não é incompatível com o preenchimento de termos abertos pelos regulamentos administrativos. O legislador pode perfeitamente disciplinar os fatos geradores através de termos dotados de razoável abertura semântica que exijam um complemento de significação veiculado por outras espécies normativas. A disciplina regulamentar de termos legais não é nem nunca foi inconciliável com o princípio da legalidade tributária estrita. O limite desta conciliação foi e sempre será o campo de significação normativa possível do termo utilizado pelo legislador. Logo, o fundamento do Ministro relator para a tal “legalidade suficiente” não encontra qualquer suporte teórico.
Em seguida, o Ministro relator fundamenta sua decisão em uma estranha argumentação acerca do grau de coatividade das diferentes espécies tributárias, apoiando-se em doutrina alienígena, claramente construída sob outros pressupostos constitucionais. Segundo Sua Excelência, “levando em consideração o direito nacional, mas sem a pretensão de analisar toda a legislação tributária, verifico que o pagamento de impostos não decorre de benefício imediato concedido ao contribuinte. Vide não estarem essas exações vinculadas a qualquer atividade estatal específica. Tais tributos são, assim, portadores de alta carga de coatividade, o que implica dizer que o princípio da legalidade tributária é, para eles, mais rígido.” Adiante conclui que “Em suma, pode-se dizer, com base nos recentes precedentes da Corte e nos ensinamentos doutrinários, que a constitucionalidade da flexibilização do princípio da legalidade tributária é verificada de acordo com cada espécie tributária e à luz de cada caso concreto.”
Vale dizer, segundo o voto condutor do precedente comentado, referendado pela maioria da Corte, as características peculiares de cada espécie tributária definiriam a maior ou menor flexibilização do princípio da legalidade tributária.
Tal interpretação até assume alguma lógica jurídica no plano teórico, mas não foi esta a escolha da Constituição brasileira e não cabe ao Supremo Tribunal Federal inserir no Texto Constitucional o que ele não albergou. Não compete ao Supremo Tribunal Federal alterar as escolhas fundamentais tomadas pelo constituinte e expressas de forma cristalina no Texto Constitucional.
Diferentemente do que decidido pelo Supremo Tribunal Federal, a Constituição brasileira não contempla duas legalidades tributárias: uma para impostos e outra para contribuições e taxas.
Ao contrário, a Constituição brasileira foi expressa na escolha do princípio da legalidade como garantia fundamental do contribuinte brasileiro, disciplinando expressamente as hipóteses em que admite a sua flexibilização, ainda assim sob condições e critérios (art. 153, parág. 1º). O Supremo Tribunal Federal age completamente fora das suas atribuições constitucionais quando admite possibilidades de inovação normativa expressamente vedadas pelo Texto Constitucional.
É lamentável que a legalidade tributária, fruto de longa construção histórica de norma de bloqueio ao exercício desmedido do poder tributário pelo Estado, esteja sendo lentamente destruída pela Corte cuja missão é justamente a de guardar as liberdades constitucionais. A guarda da Constituição exige da Corte a conduta oposta, a saber, o inclemente repúdio à irresponsável atitude de renúncia dos representantes do povo reunidos no Poder Legislativo de exercer o poder democrático de disciplinar matéria de fundamental importância para a cidadania, como a definição de fatos tributários em sua completude.
O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal parece ter chegado ao Direito Tributário e caracterizado por um inegável color autoritário de viabilizar a cobrança de tributos e poderes tributários em manifesta contrariedade à ideologia constitucionalmente adotada pelo Texto Constitucional.
A Carta dos Direitos do contribuinte está paulatinamente se transformando pela pena do Supremo Tribunal Federal na Carta das Prerrogativas Fiscais. Regras de competência tributária tem sido alargadas por mera interpretação para incluir materialidades nelas não previstas (veja-se o conceito de serviço tributável para efeito de ISS), normas constitucionais de inegável significação passam a depender de lei infraconstitucional (veja-se o princípio da não-cumulatividade do ICMS passando a depender do que dispuser a lei complementar) e até princípios fundamentais como a legalidade tributária sofrem estranhas construções interpretativas, todos movimentos hermenêuticos com objetivo comum: chancelar posições do poder tributante.
No plano doutrinário, é comum cogitar-se de evolução da jurisprudência pelos Tribunais, no entanto em matéria de tributação o que temos assistido é uma involução da Jurisprudência notadamente através de decisões do Supremo Tribunal Federal que vem sistematicamente destruindo o articulado de sentido construído pelo constituinte de 1988 e fortalecendo as posições do poder fiscal em detrimento das liberdades individuais.
Lamentavelmente o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal chegou na histórica barreira construída pelos povos contra o arbítrio tributário que é o princípio da legalidade. Na luz do dia, a nossa Corte Constitucional referendou a interpretação segundo a qual cabe ao Poder Legislativo decidir se cumpre ou não a legalidade tributária, desconhecendo por completo a disciplina constitucional clara em sentido contrário.
É preciso repudiar de forma veemente a postura do Supremo Tribunal Federal em tentar reescrever o Texto Constitucional segundo as próprias preferências. Um atentado à Constituição transforma-se em pecado capital quando perpetrado por aqueles a quem foi atribuída a tarefa institucional de através da proteção da Constituição, garantir a sociedade democrática.