O DIREITO AO ERRO E O RESPEITO AO CONTRIBUINTE

*Artigo publicado no Jornal O Liberal em 16.02.2020

 

Cresce a consciência mundial entre os Governos acerca da criação de regras que estabeleçam um ambiente de confiança e de segurança jurídica na relação que estabelecem com os cidadãos e as empresas, fruto da crença de que o mero apelo à coação do direito apoiada na imposição de penalidades é insuficiente para garantir a eficiência do Estado. É preciso a adoção de medidas que permitam resgatar a legitimidade do poder político na dimensão da atuação administrativa concreta.

No final de 2018, a França editou a lei ESSOC, la loi pour um État au service d’une société de confiance – “a lei para um Estado a serviço de uma sociedade de confiança” – com o objetivo de renovar a relação entre a Administração e os cidadãos franceses, privilegiando a boa fé e preservando os direitos fundamentais de todos, especialmente a saúde pública e a segurança das pessoas e da propriedade.

Um dos pilares desta Lei foi a consagração do direito ao erro.

O direito ao erro apoia-se no princípio da boa-fé do administrado e investe a carga da prova entre este e o Poder Público. A partir da lei, caberá à Administração Pública provar que o cidadão agiu com má-fé, presumindo-se a boa-fé deste.

A lei francesa assegurou que um administrado que pela primeira vez e de boa fé tenha cometido um erro tem o direito de regularizar a situação, espontaneamente ou por requerimento da Administração Pública, dentro do prazo que esta fixar, sem sofrer qualquer sanção.

Se a correção da situação se der de forma espontânea e tiver gerado tributo em atraso, os juros são reduzidos em cinquenta por cento. Caso o erro tenha sido detectado pela Administração Pública, ainda assim os juros de mora são reduzidos em trinta por cento. Evidentemente que o direito ao erro não constitui uma autorização para errar e não se aplica aos contumazes e aos fraudadores.

O direito ao erro consubstancia uma profunda alteração na lógica da relação entre o Estado e os seus cidadãos e o resgate de um valor fundamental para o Estado de Direito: a confiança, expressão da segurança jurídica nas relações jurídicas.

Para quem pretende empreender em uma nova atividade, a lei assegura o direito de requerer à Administração Pública a emissão de um certificado de informações sobre as regras que regem esta atividade e que devem ser cumpridas. Este certificado deve ser expedido pelo Poder Público em no máximo 5 meses. Se o Estado deseja que o cidadão cumpra as regras, deve estar pronto a informar adequadamente tais regras, dentro da premissa da boa-fé e de que ninguém erra deliberadamente.

Entre outras regras, a lei cria ainda uma garantia fiscal apoiada no princípio da confiança. Obriga que no procedimento de fiscalização a Administração Tributária defina expressamente as questões por ela analisadas, emitindo um documento que pode ser oposto posteriormente pelo contribuinte, como manifestação oficial da posição do ente tributante, impedindo nova avaliação sobre fatos já verificados pela autoridade fiscal.

De acordo com a nova regra, aplicável desde o início de 2019, os contribuintes franceses têm direito de ser informados de todos os pontos que foram fiscalizados pela autoridade tributária, definindo-se formalmente quais os aspectos já submetidos ao controle e verificação da autoridade fiscal.

As posições tomadas pela autoridade em relação às questões analisadas durante o processo de fiscalização passam a ser vinculantes à Administração Pública, protegendo o contribuinte contra mudanças de entendimento das autoridades fiscais quanto a temas por ela já analisados.

A lei francesa é um exemplo a ser seguido no Brasil, onde vigora a doutrina da punição e do culto ao conflito entre Fisco e contribuinte, estimulado por uma legislação arcaica que ainda aposta na sanção como único mecanismo de efetividade da norma tributária.

Diante da pronunciada complexidade do sistema tributário brasileiro, incompreendido em muitos aspectos até pelos especialistas no tema, é chegada a hora de os Governos mudarem a lógica da nossa legislação tributária, criando regras que diminuam, simplifiquem e viabilizem o cumprimento dos deveres acessórios, protejam e premiem os contribuintes de boa-fé que buscam cumprir com os seus deveres e abandonem a lógica punitivista que marca o nossa realidade.

É premente a criação de mecanismos de reforço ao princípio da confiança e da não-surpresa a impedir que o contribuinte seja obrigado a cumprir novas regras ou entendimentos fiscais sem um prazo razoável para conhecimento, compreensão e adaptação dos seus procedimentos fiscais e negociais.

Portanto, no momento em que o Congresso Nacional debate a desejada reforma tributária, penso que, tanto pela consagração do direito ao erro, da boa-fé do cidadão, do princípio da confiança e, sobretudo, do respeito ao contribuinte, a citada lei francesa é um exemplo a ser seguido pelo Brasil.

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